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Cláudia, as lições de quem vive contra o femicídio

Atualizado: 27 de jun. de 2021


Femicídio, a "morte das mulheres pelo simples facto de serem mulheres". Revoltante? Sim, isto existe. A Cláudia Rosário é uma órfã da violência doméstica. A sua história traz tanto de emoção como de luta.

Sinopse sobre como a conheci

Em 2009 (sim há 10 anos!) fomos calhar à mesma turma de licenciatura em Relações Internacionais no ISCSP. É verdade que nunca trocámos muitas palavras mas não nos perdemos o rasto. Quem diria que passados estes anos teríamos tanto para partilhar? Fico feliz.

Sinopse sobre a Cláudia

Esta história é tão especial quanto outras que são partilhadas aqui porque trata-se de uma vida, contudo esta por tudo o que carrega faz sentido que seja em grande parte contada pelo digitar das teclas da Cláudia e não tanto das minhas. Já vais perceber porquê.

"Nos últimos dias pensei muito sobre o que escrever para responder ao teu desafio. A minha história, a minha vida, é marcada por alguns acontecimentos dramáticos que definiram o meu percurso, a minha personalidade e a minha forma de ver o mundo. Por momentos pensei que talvez fosse melhor voltar atrás e dizer-te que não estou à altura de responder ao teu desafio. Todos os exemplos que tens apresentado são tão positivos! Mas depois pensei melhor e...porque não? Vou então falar-te um bocadinho de mim. 2004. Foi em 2004 que toda a minha vida mudou. Era apenas uma criança de 12 anos como tantas outras numa cidade pequena do interior do país e como tantas outras crianças queria estar com os meus amigos da escola horas a fio, partilhar com eles as aventuras do dia-a-dia, rir, dizer e fazer disparates, falar sobre tudo e falar sobre nada. Até há pouco tempo vivia apenas com a minha mãe, durante anos fomos só nós as duas. Tenho duas irmãs mais velhas que cedo saíram de casa e seguiram as suas vidas. A certa altura, deixámos de ser apenas as duas e o homem que mudou a minha vida passou a fazer parte dos nossos dias. Nunca suspeitei de nada, nunca assisti a discussões ou maus-tratos. 13 de abril de 2004, 10h: estávamos no restaurante da minha mãe e fomos surpreendidas por ele. Tinham discutido na noite anterior. Ele tinha “ciúmes”. Segundo ele, a minha mãe “falava demais com os clientes”, “era demasiado simpática”. Ele havia passado o dia anterior escondido no restaurante a “observar”, saiu do esconderijo na hora do fecho, ameaçou-a e ela fugiu. Veio ter comigo a casa da minha melhor amiga. Tinha-lhe pedido para dormir lá e ela acedeu. Quando chegou, a minha mãe estava em lágrimas, assoberbada por um medo terrível. Tentámos demove-la de regressar a casa ou ao restaurante, mas na manhã seguinte preocupada com as dívidas do negócio disse não poder ter o restaurante fechado um único dia. Fui com ela. Pouco depois de chegarmos ao restaurante, ele entrou, discutiram e breves minutos depois a minha mãe estava morta. Fiquei em choque, mas tudo o que aconteceu a partir desse momento foi de tal forma inacreditável que durante muito tempo acreditei que tudo não passava de um pesadelo. Fui levada para o hospital mais próximo para que pudessem tratar da minha perna (não senti, mas ao tentar defender a minha mãe levei uma facada). Depois, fui levada para outro hospital a 20km dali para que um psicólogo me pudesse dizer aquilo que eu já sabia: a minha mãe morreu. Nesse mesmo dia, fui levada para a casa da minha irmã mais velha. Passaram-se meses de angústia e dor. À dor sentida juntou-se o peso de ser a única testemunha. Não fui tratada como uma criança, muito menos como uma criança que perdeu a mãe. Fui tratada como mais uma testemunha! Fui levada a tribunal e repeti o que vi vezes sem conta. Fi-lo na presença do homem que mudou a minha vida. Fi-lo numa sala de portas abertas onde a presença de dezenas de pessoas me fez sentir ainda mais pequenina. Fi-lo sem qualquer tipo de apoio psicológico. Todo o processo me fez acreditar que podia ter feito alguma coisa para evitar a morte da minha mãe. Juro que acreditei. E se...? E se...? Tantos ses! Os dias passaram e tudo parecia regressar a uma certa normalidade até ao momento em que oiço o meu cunhado ameaçar a minha irmã. “Vê lá se queres acabar como a tua mãe”. Não foi a primeira vez e muitas mais se seguiram. Não havia dia em que estivesse tudo bem. Violência física, violência psicológica, jogos emocionais, chantagem. Tudo parecia valer. Pensei mais uma vez que tudo não passava de um pesadelo. Não era possível. Aquilo não estava a acontecer. Nesse momento tive medo, muito medo. Não queria ficar sem a minha irmã. Não queria que as minhas duas sobrinhas ficassem sem a mãe. Não podia acontecer. A história não podia repetir-se. Decidi que tinha de fazer alguma coisa, mas não sabia o quê. Passaram-se 4 anos até conseguir perceber o que fazer. Vi um poster da APAV e liguei. Esse foi o primeiro passo para sairmos dali. Em 2008 fugimos. Eu, a minha irmã e as minhas duas sobrinhas. Com a roupa do corpo. Fomos recebidas numa Casa de Abrigo de Alcipe. Muito aconteceu desde então.

Hoje sei que pouco ou nada uma criança pode fazer numa situação como esta. Se aprendi a lidar com a morte? Talvez. Se aprendi a lidar com sentimento de abandono? Não. Abandono por parte de quem? De um inexistente Estado Social. O mesmo Estado que se orgulha de ter uma das Leis Constitucionais mais progressistas do mundo e que afirma assegurar "especial proteção às crianças órfãs, abandonadas ou por qualquer forma privadas de um ambiente familiar normal" (Artigo 69.º da Constituição da República Portuguesa). Daquilo que está escrito à realidade vai uma grande diferença. Não basta entregar a criança a quem está mais à mão: familiares diretos ou não, instituições, não importa. O que acontece depois ninguém sabe. O Estado não tem capacidade de dar apoio nem de monitorizar o crescimento destas crianças. Ou talvez não queira ter essa capacidade. Estas crianças, como eu, têm o direito de ser vistas como vítimas. Vítimas que necessitam de uma intervenção social integrada. Não podem simplesmente ser encaradas como um “complemento” da mãe, mas como um sujeito com necessidades específicas, num contexto relacional impregnado pela violência. Os efeitos que o trauma da exposição à violência doméstica pode ter no desenvolvimento psicológico, emocional e cognitivo das crianças são complexos. A criança de 12 anos cresceu à força e é hoje é uma mulher atenta a este assunto. Hoje, eu e a minha irmã estamos em segurança. As minhas sobrinhas estão em segurança. Quebrámos o ciclo de violência apesar de todas as dificuldades. Podia dizer que tudo está bem quando acaba bem. Mas, para mim, esta guerra ainda agora começou. Enquanto órfã da violência doméstica, considero que é crucial dar voz, dar cara às centenas de crianças vítimas invisíveis da violência doméstica. Não chega dizer basta. É preciso agir. Cerca de 700 crianças ficaram órfãs na última década. Precisamos de medidas rápidas e eficazes para mudar esta realidade. E porque a cidadania ativa é um instrumento poderoso, no inicio de dezembro de 2018 nasceu oficialmente a Contra o Femicídio | Associação de Familiares e Amigas/os de Vítimas de Femicídio – ACF. A Contra o Femicídio é uma associação não-governamental criada em dezembro de 2018, no contexto da violência contra as mulheres com base no género e violência doméstica.

Apesar de sediada em Lisboa, é uma associação de âmbito nacional e que irá orientar-se pelos princípios fundamentais que decorrem de referenciais internacionais na área dos Direitos Humanos, nomeadamente a Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica, adotada em Istambul, a 11 de maio de 2011. O surgimento desta associação, que pretende ser ativa na prevenção e no combate ao femicídio, resulta do reconhecimento de que a violência com base no género constitui uma grave violação de Direitos Humanos e que causa, muitas vezes, mortes de mulheres, crianças, amigas/os e profissionais. É neste contexto, que adotamos como objeto/missão o apoio às famílias envolvidas em situações de violência contra as mulheres baseada no género, que resultam em homicídio das mesmas ou morte posterior resultante de agressões e/ou homicídio de vítimas colaterais, de forma a ultrapassarem o processo do luto e a retomarem o controlo das suas vidas.

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E...é isto! Entretanto fui fazendo outras coisas. Trabalhei e estudei sempre ao mesmo tempo. Primeiro no ISCSP (Relações Internacionais), depois na FCSH (Ciências da Comunicação). Trabalho há cerca de 4 anos e meio no British Council. E no meio desta loucura toda que é a minha vida considero que sou uma rapariga com sorte porque o universo me muniu de muita energia, positivismo e boa disposição. Tenho conhecido pessoas incríveis. Tenho amigas e amigos espetaculares. Tenho um namorado maravilhoso com quem vou casar a 13 de abril de 2019 (15 anos depois! do dia que mudou a minha vida) e tenho tido a oportunidade de viajar um bocadinho pelo mundo. Fascina-me a diferença que existe em cada um de nós e sou uma apaixonada pela vida".

Entretanto a Cláudia já se casou e mais episódios teria para contar. Fica o convite para explorares o seu testemunho e o trabalho que faz em prol dos Direitos Humanos que está espelhado no mundo online: Pros & Contras em Fevereiro 2019 sobre o tema "A tragédia da violência doméstica" aos 17 minutos; os artigos na Capital Mag, no Diário de Notícias, no Observador, na TVI, na Rádio Renascença, Visão,...

De 2005 até 2018 foram mortas 503 mulheres. Em 15 anos cerca de 33 mulheres ao ano perderam a vida nas mãos de alguém e deixaram à força as suas famílias.

Deixamos-te o contacto da associação caso sintas que precisas de conversar e contribuir para esta missão: associacao.contraofemicidio@gmail.com

 



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Boas Aventuras,

Solo Adventurers Joana & Cláudia Rosário

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