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Por um mundo sem guardiões

Atualizado: 1 de fev. de 2021


Há umas semanas li no Expresso que as mulheres sauditas com mais de 21 anos vão deixar de precisar do consentimento de um guardião do sexo masculino para poderem viajar para um país estrangeiro. A implementação destas medidas, em sendo concretizada, não vai ser aplicada apenas a viagens, mas a outras reivindicações, como a possibilidade de serem tutoras legais dos próprios filhos e de passarem a poder registá-los. Estas conquistas são o reflexo dos últimos anos, que têm registado algumas mudanças a favor das mulheres no reino da Arábia Saudita, com decretos reais aprovados cujo objetivo é atenuar as desigualdades entre homens e mulheres. Está a ser feita história no país.

Embora as palavras guardião do sexo masculino não sejam próximas a quem vive no Ocidente, era (e ainda é) uma realidade para as mulheres sauditas, que sempre se viram dobradas por este sistema opressor, que poucos ou nenhuns direitos lhes conferia. Sempre sobre a tutela de um marido ou de um pai, sem estatuto algum, sem oportunidades, sem liberdade. Sabemos que é uma realidade, mas custa-nos a imaginar que isto aconteça em pleno século XXI e custa-nos a acreditar como é que ainda persistem certas condutas e leis. E se falássemos do inverso? Seria igualmente difícil de imaginar? Fica o desafio.



Foi isso que fez Naomi Alderman no livro “The Power”. Criou um mundo de guardiãs do sexo feminino, onde os homens são pouco mais que escravos. Num momento em que a luta por uma maior igualdade de género cresce a cada dia que passa, surge esta visão algo surrealista e polémica de um mundo dominado por mulheres. Não parte de uma revolução, mas sim de uma condição biológica em que as mulheres possuem características semelhantes às enguias elétricas. Esta espécie de segunda corrente sanguínea, elétrica (“skein” na versão em inglês), faz com que as mulheres sejam capazes de aplicar choques elétricos, de todas as intensidades possíveis, ao toque.

A sua descoberta traz um mundo de possibilidades, onde a podridão se revela no seu expoente máximo. O que começa como a vingança da personagem Allie perante uma figura paternal violenta quando descobre do que é capaz, transforma-se numa viagem pelo sagrado, por uma guerra de sexos literal e por uma violência desmedida. Entendo a vontade de mudança, quando Tunde, um jornalista do sexo masculino (no contexto deste livro, nunca é demais referir o sexo) que vai registando todos os acontecimentos, se encontra em Deli, na Índia.

“There was a time that a woman could not walk alone here, not if she were under seventy, and not with certainty even then. There had been protests for many years, and placards, and shouted slogans. These things rise up and afterwards it is as if it had never been. Now the women are making what they call “a show of force”, in solidarity with those who were killed under the bridges and starved of water”.

Não entendo é a mudança feita desta forma, pela violência, pelo extermínio e pelo aproveitamento de um poder que não chega a todos. Mas é isso que caracteriza todas as figuras ditatoriais do nosso mundo, certo? Tirar partido de um poder que alguém ou algo lhes conferiu, neste caso o próprio corpo, e atender apenas às necessidades do indivíduo. Assim o fez Allie, ao autoproclamar-se como Mother Eve, a figura materializada de um Deus do sexo feminino numa viagem de pregação a todas as mulheres, dos Estados Unidos à Bessapara (um pequeno país localizado no que é a Moldávia), um dos palcos principais onde a história se desenrola.

Um livro curioso, cheio de twists e de complexidade. Uma abordagem algo controversa à temática do género, mas que nos deixa a fervilhar. Como se também tivéssemos uma skein.

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