O silêncio que escreve por dentro — Crónica sobre Marcelo Rui Sandramo e os seus textos
- Carla Henriques
- 21 de ago.
- 4 min de leitura
Atualizado: 22 de ago.
Há textos que não são apenas escritos. São vividos. E há vozes que não precisam de gritar para ecoar dentro de cada um de nós. Marcelo escreve assim: com o peito aberto e os olhos atentos ao mundo, mesmo quando o mundo não o olha de volta.
Nasceu em 05 de setembro de 2006, em Quelimane, província da Zambézia – Moçambique. Estudante do curso de Direito na Universidade Unilicungo e ativista social com apoio de organizações não governamentais e leva dentro de si as cicatrizes de uma terra que ensina cedo demais o que é lutar — não por glória, mas por dignidade.
Os seus textos não vêm das bibliotecas nem dos manuais. Vêm das noites em claro, do chão que não é firme, da infância que não foi só inocência. Nem todos os leem ou irão ler. São pedaços da sua alma, a sobrevivência em forma de poesia. Como em “Pensamentos Suicidas”, onde a dor não é vitimização, mas resistência pura. Ele escreve como quem procura sempre segurar-se. Como quem se recusa a desaparecer sem dizer o que sente. E é essa urgência que nos prende! Sentir. Dizermos o que sentimos.
“Delirando, conversando, orando comigo mesmo. Orava pra Deus, com o espírito e o físico cansados, mas com a cabeça inclinada e os joelhos ainda dobrados.”
Na sua pequena biografia, Marcelo diz ser "reservado, mas feliz". Como se as palavras fossem o seu refúgio. É isso que sentimos quando o lemos. Como se, no silêncio entre um parágrafo e outro, entre uma frase e outra, coubessem todos os seus gritos que a sociedade ainda não soube escutar. Nem quer escutar. E talvez seja mesmo isso que faz dele um jovem escritor necessário: a capacidade de falar com verdade sobre o que a maioria prefere calar.
Em “Salgado”, o texto parece cuspido com raiva contida e sabedoria precoce. Um manifesto contra a desigualdade, mas também um sussurro de dignidade. Marcelo é o “marginal” que observa, o miúdo que muitos julgaram sem conhecer. É a voz que habita em nós — e que tantas vezes ignoramos. É a pobreza a ganhar palavras. É a revolta a transformar-se em arte.

“Eu sou o marginal marginalizado na avenida marginal.”
“Eu sou aquele que habita em vós, mas vós não habitais comigo.”
Escreve com a crueza de quem conhece por dentro o que é viver à margem. Com tão tenra idade.
Mas ao mesmo tempo consegue mostrar-nos a beleza rara de quem soube fazer da dor um lugar de encontro. Como em “CRIANÇA”, onde uma menina vê os pais mortos e ninguém vê a sua dor — só o seu choro que não para.
“Ela via os pais estendidos, sem responder ao seu triste chamado porque estavam mortos.”
É neste confronto entre inocência e brutalidade de quem cresceu à força que Marcelo se revela. Não como vítima, mas como testemunha. A sua escrita é crónica viva da exclusão, da pobreza, da luta, mas também da esperança.
Mesmo nos seus textos mais curtos, como “Amanhecer”, há uma força silenciosa que se insinua:
“Os altruístas [...] são os artistas, cujo grito do silêncio é tão grande que nos ensurdece.”
Há qualquer coisa de sagrado no modo como ele usa a língua e as palavras. Não como quem quer ser ouvido, mas como quem precisa respirar. Como quem sabe que a palavra pode salvar — se não a ele, talvez alguém que o leia do outro lado do mundo. Porque talvez Marcelo não saiba, mas ele carrega consigo o poder de abrir janelas em casas sem luz.
A sua escrita é mais do que literatura — é testemunho de vida. É luta. É sobrevivência. É amor. Há coragem em cada poema. Há esperança, mesmo quando embrulhada em dor. E há uma verdade que incomoda — mas que liberta.
Marcelo não escreve para ser lido. Escreve para que ninguém se sinta sozinho na sua dor. Para que alguém, em algum lugar do mundo, possa encontrar uma voz onde antes só havia silêncio.
E é por isso que Marcelo não escreve apenas textos.
Marcelo escreve humanidade.
Gostavas de apoiar o sonho de vida do Marcelo, o de ser escritor?
Conversa connosco via sonhadores.praticantes@soloadventures.pt
Leia um texto completo do Marcelo:
CRIANÇA
Certo dia, ao meio-dia, depois de uma batalha feroz, uma criança — bem no meio dos escombros, com as lágrimas já no seu rosto ela se escondia.Trêmula, com frio e com medo.Mas, no momento nada disso importava. Afinal, ela só chorava.
Ela só queria paz e conforto.Porque, no meio dessa toda batalha e de todo aquele confronto, entre gritos e disparos provocando um estrondo, com os olhos marejados de lágrimas, se perguntava:"Por que as armas?"
Ela via...
Via, à sua frente, os pais estendidos, sem responder ao seu triste chamado porque estavam mortos.Eram só choros.
Foi triste aquele dia.A criança, sozinha, com a dor e os chorros entalados na garganta, ela já não mais sorria...O que havia?
Todavia, levava á desgraça uma vida que, por sua vez, era repleta de bondade e graça.
Mas, sem os seus pais ou familiares, sem alguém para abraçá-la e a destinguir no meio de milhares...O que a esperava nessa triste e violenta humanidade?Que, independentemente da idade ou do que é exigido as autoridades,nós somos só crianças em busca da felicidade.
No fim, choramos por qualquer coisa e nus rimos por qualquer uma outra.Seja castanho, branco ou preto.Ou se esteja usando dessas qualquer uma outra roupa.suja ou limpa, ou daquelas feitas sob medidanada disso significa.






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