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"Never Let Me Go", de Kazuo Ishiguro

Escrever sobre este livro sem revelar tudo carrega em si uma boa dose de dificuldade. Se por um lado quero contar-vos tudo para que o murro no estômago não seja tão forte quanto o que eu levei, por outro não quero revelar demasiado porque gostava que todos e todas fôssemos surpreendidos por este livro uma vez na vida. E que lê-lo fosse sempre uma primeira vez.


Kazuo Ishiguro, prémio Nobel da Literatura em 2017, monta uma realidade alternativa, uma distopia, que nos faz refletir sobre a condição humana, o poder transformador da arte, a evolução da ciência e a sua relação com o domínio da ética. “Never Let Me Go” (em Português “Nunca Me Deixes”, com edição da Gradiva) é narrado por Kathy, antiga estudante do colégio interno Hailsham, em Inglaterra, e vai acompanhando vários momentos da sua vida e da sua relação com Tommy e Ruth, os seus dois amigos e rivais de infância no colégio.

Durante quase toda a primeira parte do livro vamos pensando que Hailsham se trata de um colégio dentro do que consideramos os padrões “normais” de uma escola ou do ensino, mas sabemos sempre que há algo de diferente, pela forma como o autor escolheu contar a vida de Kathy. Só não sabemos bem o quê. Se partirmos para a leitura a saber que se trata de uma distopia já vamos pré-avisados e de pulga atrás da orelha. Caso contrário, é só mais um colégio interno.

No entanto, a introdução de expressões como “donors”, “carers” e “guardians” sem que mais nada nos seja revelado e o entendimento da arte por parte de alguns dos estudantes e guardiões como mecanismo de salvação inquieta-nos logo. Depois de ler o livro, gosto de acreditar que o autor quis que enfrentássemos as suas páginas em direção ao desconhecido como todos os estudantes de Hailsham enfrentam o mundo “real”, o nosso mundo.

Foi rumo a essa realidade desconhecida que me caiu o queixo ao perceber que Kathy está a narrar a sua história enquanto criança e jovem que nasceu com o propósito de ser dadora de órgãos e como é composto todo o processo. Hailsham era um colégio interno, mas também uma redoma de proteção para estes jovens, para que continuassem saudáveis e não sucumbissem às tentações do mundo lá fora. Acabados os anos em Hailsham seguem para uma instituição diferente, já para jovens adultos, que os prepara para os seus primeiros anos enquanto cuidadores (o primeiro passo para se tornarem dadores é cuidarem de quem já fez múltiplas operações). É só aí que enfrentam o mundo e é um choque. Para eles que se veem confrontados com possibilidades a que não têm acesso e para nós que pensamos a cada linha “como é que isto é possível?”.

É um livro que nos revolta e faz pensar se seria possível no nosso mundo atual termos alguém que nasceu para ser nosso dador. Uma vida humana que é tão protegida ao ponto de deixar de ser uma vida. Ou melhor, uma vida que não nasceu para viver. A ciência pode e deve evoluir, mas este livro faz-nos pensar nos vários rumos que pode tomar. Vale mesmo tudo?





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